*** Por Neidilídia Andrade, da Agência Inforpress ***
Espargos, 29 Set (Inforpress) – A histórica Salina de Pedra de Lume, na ilha do Sal, é um "poderoso e melancólico" lembrete do património esquecido da nação, ameaçado pelo tempo e pelo crescimento turístico.
Um alerta surge das ruínas de uma antiga potência económica, a história, que sustentou o país durante o período colonial, está a ser corroída pelo tempo, enquanto o “boom” turístico ameaça diluir a própria identidade da ilha.
Em entrevista exclusiva, à Inforpress, o investigador Evel Rocha traça a trajectória destas salinas, desde a sua fundação por um “visionário” do século XVIII até ao seu estado actual, alertando para a necessidade da salvaguarda cultural face ao crescimento turístico.
A narrativa das salinas começa por volta de 1793 com a chegada de Manuel António Martins à ilha.
Após um naufrágio e impressionado com a imagem da ilha, Martins demonstrou uma "visão empreendedora extraordinária" ao transformar a cratera de um vulcão inactivo em extensas marinhas de sal.
“O sal produzido ali era de uma qualidade superior, inigualável em todo o Império Português, o que catapultou a ilha para o mapa económico”, sublinhou Evel Rocha.
Para facilitar a produção e a exportação, Martins investiu em obras monumentais para a época, como a construção de um túnel (iniciada em 1804 e concluída em 1808) e a edificação de um porto em 1805.
Para Manuel António Martins, a ilha do Sal era o seu "primeiro amor", simbolizado, segundo uma lenda familiar, por uma pedra de diamante num colar oferecido à esposa.
A importância das salinas atingiu o seu auge no início do século XX, após a aquisição em 1919 pelo grupo francês Salin Du Cap Vert.
Sob a gestão desta companhia, Pedra de Lume tornou-se um "polo de modernidade industrial" e de “engenharia de ponta” no Império Português.
Entre 1921 e 1922, foi instalado o primeiro e único teleférico de Cabo Verde (e do Império Português) para transportar o sal das salinas para o porto.
A localidade era, na verdade, um "protótipo de uma cidade", que utilizava até mesmo a energia eólica e funcionava como a maior fonte de rendimento do arquipélago na época.
"A nível de engenharia foi utilizado, nas salinas de Pedra de Lume, engenharia de ponta... havia linha férrea, havia o teleférico", detalha Rocha.
Entretanto, na visão do investigador, a celebração dos 50 anos de independência, em 2025, traz à tona um capítulo menos glorioso para as salinas de Pedra de Lume: o abandono.
Apesar da actividade salineira ter continuado por algum tempo após 1975, a falta de procura levou a Salin Du Cap Vert a fechar as portas em 1986.
Para o investigador Evel Rocha, o período pós-independência foi marcado pelo "desleixo" governamental em relação ao potencial da ilha do Sal.
"Os governantes não tinham qualquer expectativa sobre o que poderia ser o desenvolvimento do Sal, apesar de ter o aeroporto internacional. Até finais da década de 1990, a ilha do Sal passou de lado," lamentou acrescentando que “o resultado é visível hoje”.
As infra-estruturas históricas, incluindo os esqueletos do teleférico e os batelões no cais, estão em fase de destruição e decomposição, perdendo-se no marasmo.
A ilha do Sal só voltou a encontrar a sua “proeminência” no início dos anos 2000, impulsionada pelo desenvolvimento turístico.
As salinas, hoje exploradas pela sua vertente de talassoterapia (banhos em água salgada), tornaram-se um dos pontos mais visitados, gerando grandes receitas.
No entanto, este sucesso traz um novo perigo no entender do investigador.
Rocha alerta que, com a chegada de mais de 10 mil turistas diários e cerca de 50 comunidades estrangeiras a residir na ilha, "o Sal corre o risco de perder a sua identidade com esse fluxo turístico".
A diluição da história e a desinformação veiculada por guias turísticos sem conhecimento são preocupações prementes.
O investigador sublinha que, em 1992, funcionários da UNESCO alertaram as autoridades de Cabo Verde de que as Salinas de Pedra de Lume tinham todas as condições para serem elevadas a Património Mundial sem grandes investimentos, numa altura em que se discutia o futuro da Cidade Velha, mas que infelizmente, nada foi feito.
Em tom de apelo, Evel Rocha defende a criação urgente de uma curadoria na ilha do Sal, dedicada ao património, cultura e história local.
"Temos aqui museu, as salinas, temos aqui marcos históricos. Então há a necessidade de dar a devida utilização para cada uma dessas ferramentas," propõe.
Para o investigador, a exploração turística da talassoterapia deve ser conjugada com a preservação histórica.
Sugere-se o desenvolvimento de um centro interpretativo no local, com a recriação de protótipos e a recuperação do empreendimento antigo, que é, em última análise, o que atrai o turista interessado na história.
"No dia em que perdermos tudo, tudo isto também perde a sua essência e deixa de ser um lugar atractivo," concluiu.
O desafio, no 50.º aniversário da independência, é que o poder político tome a decisão de recuperar este legado, garantindo que o "brilho salgado de Pedra de Lume não se apague na areia do tempo”.
NA/HF
Inforpress/Fim
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