
*** Por Luís Carvalho, da Agência Inforpress ***
Cidade da Praia, 25 Out (Inforpress) – Manuel Gomes, também conhecido como Doutor Gomes, é dos primeiros médicos nacionais formados na então União Soviética, para onde, na altura, viajaram apenas com um título de viagem, porque ainda não havia passaporte cabo-verdiano.
Cabo Verde tinha acabado de se tornar independente da antiga potência colonizadora, Portugal, e alguns países amigos começaram a disponibilizar bolsas de estudo para os estudantes cabo-verdianos, mas o país recém-nascido ainda não tinha o seu passaporte.
“Deram-nos um pedaço de papel, que tinha 15 por 10 centímetros, e no topo tinha escrito ‘Título de Viagem’”, descreveu Manuel Gomes sobre as circunstâncias em que ele e outros estudantes viajaram para prosseguirem os seus estudos universitários na antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).
Segundo ele, as autoridades desses países já tinham conhecimento da situação de Cabo Verde, pelo que não apresentaram nenhum obstáculo quanto à entrada dos estudantes.
Do seu grupo, recorda, eram mais de 100 que seguiram para a antiga URSS.
À chegada a Moscovo, foram acolhidos num centro, a partir do qual foram enviados para diferentes Repúblicas, tendo-lhe cabido Volgogrado, antigo Estalinegrado.
As dificuldades de integração não foram poucas, pois saiu de um país com temperaturas médias de 30 graus positivos para um outro onde os termómetros podem atingir 30º negativos.
Os hábitos alimentares eram também diferentes daqueles a que estavam habituados em Cabo Verde.
“Um dia, fomos tomar café. Eram ovos estrelados quase crus com um pedaço de toucinho picado”, conta Gomes, que ainda se lembra do tal “arroz doce, tipo creme”, a que não estavam acostumados.
Uma vez, segundo ele, precisou comprar ovos e, para explicar à pessoa que o estava a atender, se viu obrigado a “imitar a galinha” para dizer o que queria.
Uma outra história que conta é a de massa de camarão que pediu e, em vez disso, deram-lhe uma caixa de leite.
“São coisas que aconteceram por causa da barreira linguística”, admitiu.
Entretanto, os estudantes cabo-verdianos tinham algumas vantagens pelo facto de dominarem um pouco o francês e o inglês, que aprenderam nos liceus.
Assim, socorriam dos colegas de países falantes destas línguas, como Nigéria, Gana e Gabão, que já dominavam o russo, para lhes ajudar nas compras e também como apanhar o transporte.
Depois de um ano de aprendizagem do russo, foi transferido para a Faculdade da Medicina, onde concluiu a formação com sucesso.
“Durante um ano, que se chama faculdade preparatória, o estudante vai aprendendo a língua, mas essa aprendizagem, é de tal maneira orientada, no quadro do curso que vai fazer”, contou o entrevistado da Inforpress, no quadro dos 50 anos da independência nacional.
Entretanto, a pouco e pouco foi se adaptando à nova realidade tendo concluído o curso “com sucesso”.
De regresso a Cabo Verde, teve um ano de integração no Hospital Central da Praia, tendo como tutor um colega mais velho que se tinha formado em Portugal.
Um ano depois, foi colocado no Tarrafal, tornando-se no primeiro médico nacional neste município, que ainda integrava Calheta de São Miguel.
Na altura, a então vila do Mangui dispunha apenas de um posto sanitário, isto em 1983.
“Chegando lá [Tarrafal], fui nomeado delegado de Saúde, pelo então ministro Irineu Gomes”, indicou Manuel Gomes, para quem aquela Delegacia tinha a estrutura de um “pequeno hospital”.
Mais tarde, seguiu para França, onde se especializou em cirurgia buco-maxilo facial, permitindo que crianças nascidas com este tipo de patologia fossem operadas em Cabo Verde, “excepto casos graves”.
Instado a falar sobre a medicina no passado no arquipélago, disse que, além de “duro era muito trabalho”, porque, enfatizou, “o país precisava”.
Na sua perspectiva, na altura, as bases de cuidados primários de saúde eram “muito fortes”.
“Actualmente, deixaram os cuidados primários para trás e se preocupam mais com o hospital com cuidados secundários e terciários”, lamentou Doutor Gomes.
Uma das suas preocupações, como delegado de Saúde, eram os cuidados primários do sector.
“Se hoje estamos com um sistema de saúde num patamar muito avançado, isto se deve aos cuidados primários de saúde, que, no início, foi forte”, vincou Manuel Gomes.
No prédio da sua residência, onde também funciona a sua clínica, há um mural com o seguinte escrito: “Da bu fidju mama. El ke bu bengala na bu bedjisa (Dá mama ao teu filho. Ele que é tua bengala na tua velhice, em português)”.
Este mural fica virado para o Centro de Saúde de Tira Chapéu, por onde passam diariamente algumas centenas de pessoas.
Com este mural, afirma este médico aposentado, quis estimular as mães a amamentar os seus bebés, porque, no futuro, podem precisar do apoio dos seus filhos.
“O filho vai servir de bengala na velhice da mãe”, concluiu.
LC/AA
Inforpress/Fim
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