
*** Por Luís Carvalho, da Agência Inforpress ***
Cidade da Praia, 28 Out (Inforpress) – A então jovem Ema Mascarenhas rumava, em Agosto de 1979, à antiga União Soviética e, depois de oito anos, regressa ao País, como médica, para contribuir para o desenvolvimento do Sistema Nacional de Saúde (SNS).
Foi uma viagem longa, que se iniciou na Cidade da Praia, com escala na ilha do Sal até Moscovo, capital da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).
“Sou do tempo dos voos frequentes da Aeroflot [companhia aérea da ex-URSS] para o Sal”, diz a médica obstétrica, hoje aposentada, que recebeu a equipa de reportagem da Inforpress no seu consultório privado para dois dedos de conversa.
Na Ucrânia, onde se formou, além de “invernos rigorosos”, teve ainda que enfrentar barreiras linguísticas, mas que, com o tempo, foram ultrapassadas.
De regresso a Cabo Verde, iniciou as suas actividades médicas no Hospital Dr. Agostinho Neto, onde afirma ter encontrado uma equipa reduzida de clínicos. O seu primeiro estágio foi na Pediatria e, depois, na Enfermaria de Medicina.
“Tive um grande apoio da dra. Benvinda Lima, que, na altura, estava na Pediatria”, reconhece Ema Mascarenhas, acrescentando que foi uma “troca de experiência”. “Nós aprendemos em russo e tivemos que converter todo o nosso aprendizado em português”, explicou.
Realça que com toda a humildade aprendeu todos os protocolos relativos à pediatria, área em relação à qual nunca se tinha debruçado durante a formação em Odessa (Ucrânia).
“Era época de muita diarreia, muita meningite, febre tifóide, tétano, que eu nunca tinha visto e só estudado no livro”, comenta, revelando que quem estava na Pediatria também dava cobertura à Maternidade e à Neonatologia.
Além do Hospital Central, quinzenalmente deslocava-se à Cidade Velha e São Domingos para consultas itinerantes.
A especialidade em obstetrícia, afirma, foi por conta própria e custou-lhe caro, pois os anos que esteve no Brasil não foram contabilizados para efeito da reforma, pelo que teve que trabalhar mais dois a fim de completar o tempo de ir para a casa.
Depois de especialização, ela e as colegas regressaram ao país para retomarem os seus postos de trabalho no Hospital Dr. Agostinho Neto.
“Não foi reconhecido o nosso esforço, porque quando chegou a época da reforma, tivemos de trabalhar uns dois anos, uma vez que tivemos que pedir uma licença sem vencimento. Assim é o nosso sistema”, lamenta Ema Mascarenhas, acrescentando que, se hoje tivesse que fazer a mesma opção, fá-lo-ia sem problemas.
Considera que fez a sua especialidade num tempo “muito conturbado”.
“Havia uma forte corrente a querer fazer o tal curso, digamos, uma parte em Cabo Verde, outra parte em Portugal. Mas passei cinco anos à espera que saísse do papel, pelo que tive que avançar por conta própria”, comentou Ema Mascarenhas, que já estava a entrar na faixa dos 35 anos que, conforme alega, para uma especialidade cirúrgica é “importante”.
Para uma especialidade cirúrgica, justifica, uma pessoa não tem tantas habilidades como teria antes dos 35.
“Fizemos as diligências, conseguimos as vagas, através do nosso cônsul honorário Aguinaldo Rocha, em São Paulo [hoje falecido], que nos abriu as portas", lembra a médica.
Segundo ela, o Ministério da Saúde não autorizou nem achava “pertinente” a ida delas ao Brasil.
“Não podíamos esperar mais. Fomos e fizemos a formação com êxito”, congratula-se.
Na sua perspectiva, as médicas que foram ao Brasil fazer especialidade deviam ser “ressarcidas”, em vez de penalizadas, porque tiveram “perdas financeiras”.
“Hoje, os reformados, todos têm uma queixa, todos têm uma doença, todos têm algo que acumulamos com o tempo. Até, digamos, as nossas famílias foram muito sacrificadas”, aponta, indignada, a médica que, hoje, quando vai ao hospital, é atendida como “extraterrestre, sem respeito e sem prioridade, porque “acabaram com o Gabinete de Atendimento aos Trabalhadores do hospital, como outrora existia.
Segundo a médica, muitas vezes, o pessoal reformado é cobrado pelo hospital onde trabalhou toda a sua vida.
O Ministério da Saúde, assinala, tem reformados capazes e que podiam ser “melhor aproveitados”.
“Não nos convidam nem às cerimónias, quanto mais aproveitar as capacidades dos reformados”, sublinha, lamentando que o departamento governamental da Saúde os tenha colocado na “prateleira”.
“Temos e teríamos muito para dar. O Ministério não nos aproveita. E é só em Cabo Verde”, queixa-se Ema Mascarenhas.
Perguntada se sente magoada, responde: “Eu não diria que magoa, mas acho que alguém devia mudar o jogo”.
Apesar de tudo, continua a vestir a camisola, fazendo feiras de saúde em parceria com a Igreja Católica e associações, como a que luta contra o Cancro.
“Não querem aproveitar. É uma pena, mas pronto”, conclui, dizendo que aprendeu a gostar da medicina para servir e não para colher louros.
Ema Mascarenhas afirma que a sua dedicação a cuidar dos outros foi sempre “grande”.
“Havia dias que, praticamente, não nos sentávamos”, pontua a médica, que ainda se recorda dos rigorosos invernos que teve que enfrentar na Ucrânia, assim como a barreira linguística nos primeiros tempos.
LC/ZS
Inforpress/Fim
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