***Por: Marli Coutinho Mendes, da Agência Inforpress***
Tarrafal, 14 Out (Inforpress) – Aos 74 anos, Júlio César de Sousa Monteiro, conhecido carinhosamente por Julinho, fala pausadamente, com a serenidade de quem viveu o início de uma nação — mas também com a amargura de quem sente que a promessa de 1975 ficou incompleta.
As mãos que um dia seguraram a bandeira da independência de Cabo Verde estão agora marcadas pelo tempo.
“Levantei a bandeira do meu país, mas ainda espero pela verdadeira independência”, diz, com um sorriso triste.
Julinho incorporou-se nas Forças Armadas a 28 de Abril de 1975, no Centro de Instrução Político-Militar Zeca Santos, no Tarrafal — o coração da formação dos novos militares de um país que ainda se preparava para nascer.
Dois meses depois, a 28 de Junho, participou no juramento da bandeira e, dias mais tarde, foi chamado de surpresa para uma missão que marcaria a sua vida: ser o porta-bandeira do 5 de Julho, no Estádio da Várzea, na Praia.
“O comandante Timóteo Tavares disse-me: ‘Vai buscar a bandeira’. Não estava preparado. Fui, tremendo, mas consciente de que aquele era o momento mais importante da nossa história”, contou.
A cerimónia reuniu o povo e várias entidades: unidades militares, milícias, grupos de tabanca, juventude do JAC, mulheres da OMCV (Organização das Mulheres de Cabo Verde) e representantes estrangeiros. Quando o hino nacional soou pela primeira vez e a bandeira subiu ao céu, o vento soprou forte e o céu escureceu, contou.
“O povo gritava que era a alma de Cabral a passar por nós. Eu só conseguia pensar que o sonho de um povo estava ali, nas minhas mãos”, completou a mesma fonte.
Cinquenta anos depois, Julinho sente que o sonho ficou a meio caminho. “A luta não era só por bandeira e hino. Era para o povo viver melhor. Hoje vejo jovens a sair em massa do país porque não têm oportunidades. Isso dói mais do que a fome que vivemos nos anos 70”, exteriorizou.
O antigo militar recorda os anos de sacrifício e patriotismo, quando o país começou do zero. “Pedro Pires encontrou o cofre vazio. Mesmo assim, com ajuda internacional e muita vontade, fez nascer escolas, hospitais e quartéis. Reflorestámos o país, plantámos esperança com as próprias mãos”, lembrou.
Mas o olhar de Julinho endurece quando fala do presente: “Temos médicos, mas não temos hospitais. Temos juventude, mas não temos trabalho. Temos políticos, mas falta-nos líderes com vergonha na cara”.
Para ele, o país perdeu o rumo da justiça social que inspirou Amílcar Cabral. “A independência foi conquistada com suor e sangue. Mas o patriotismo esvaiu-se. Hoje há elites e há o povo — dois mundos que já nem se cruzam”.
Entre as poucas lembranças que guarda, estão as luvas brancas que usou naquele dia, que ainda as guarda — ou melhor, guardava-as. “Emprestei-as à Fundação Amílcar Cabral e nunca mais me devolveram. Mas, vão ter que devolver porque são relíquias e parte da minha história”.
Já a bandeira — o símbolo que inaugurou uma nação — desapareceu sem deixar rasto. “Ninguém sabe onde foi parar. Devia estar num museu. É a memória viva de Cabo Verde”, considerou.
Quando fala aos jovens, Julinho não esconde a desilusão, mas ainda fala com amor pelo país.
“A juventude precisa conhecer a história. Se soubessem quem foi Cabral, não viveriam conformados. O patriotismo começa no conhecimento. A independência começa dentro de cada um”, afirmou.
Para ele, a bandeira que ergueu há 50 anos representa mais do que liberdade — representa uma dívida moral com o povo.
“Valeu a pena, sim. Mas poderíamos estar muito mais longe se quem governa amasse o povo tanto quanto o povo amou esta terra”, defendeu.
Julinho termina a conversa com um olhar distante, como se ainda visse a bandeira a subir no céu da Várzea, sob o vento de 1975.
“Naquele dia, senti que o meu país nascia. Hoje, espero que ainda cresça”, concluiu.
MC/ZS
Inforpress/Fim
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