Independência/50 Anos: Mar Liso - o navio que nunca deixou São Nicolau à deriva

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Independência/50 Anos: Mar Liso - o navio que nunca deixou São Nicolau à deriva
06/11/25 - 11:07 am

*** Por Walter Marcos, da Agência Inforpress ***

Ribeira Brava, 06 Nov (Inforpress) – O navio Mar Liso, a última embarcação de cabotagem de madeira no arquipélago, carinhosamente chamado de “táxi de São Nicolau”, tem desempenhado nos últimos 43 anos um papel de destaque na economia da ilha.

Construído na Dinamarca em 1927, Mar Liso chegou a Cabo Verde em 1980, inicialmente para o sector das pescas.

No ano seguinte começou a operar no transporte de mercadorias entre as ilhas de São Nicolau e São Vicente, e hoje é um símbolo da resistência e adaptação de Cabo Verde às suas condições geográficas e económicas.

O navio é uma marca para o povo de São Nicolau, que vê nesta embarcação a solução para a maioria dos problemas da ilha, tanto ao nível de transporte de mercadorias e muitas vezes de pessoas.

Em entrevista à Inforpress, no âmbito das comemorações dos 50 anos de independência de Cabo Verde, o historiador, investigador e realizador, José Cabral, destacou a importância histórica, social e simbólica do navio Mar Liso.

José Cabral destaca que o navio já “pôs comida na mesa de todos os são-nicolauenses durante os mais de 40 anos” e foi e continua sendo responsável por transportar, além de mercadorias, parteiras e sinistrados, até corpos para serem sepultados em São Nicolau. 

“Já houve altura em que São Nicolau ficou por três meses sem nenhum barco de carga no porto, excepto os navios que transportam combustível, e tudo era Mar Liso”, destacou.

Segundo o mesmo, não se pode falar do navio Mar Liso, sem falar do trio que o comprou, ou seja, Alcides Graça, Alcides Évora e José, e quem desde há muitos anos tem o navio em funcionamento, Manuel Flor, conhecido como Manuelinho de Mar Liso.

José Cabral sublinhou que, por isso, falar do Mar Liso é “falar de gente, de seres humanos que dedicaram a vida a servir o povo”.

“Temos que reconhecer os marinheiros, as condições em que trabalham, pois Mar Liso é um barco sem acomodações, espaço complicado, eles trabalham em condições severas, que só para ter uma ideia saem de São Vicente às 23:00, passam a noite sem dormir, trabalham em São Nicolau e depois voltam para São Vicente, são cerca de 24 horas sem dormir”, contou o investigador. 

Neste sentido, José Cabral regozijou-se com o facto de o Presidente da República ter aceite a proposta de condecorar o antigo capitão do navio António Augusto Spencer, conhecido carinhosamente como Antoninho de Mar Liso, que representa, no seu entender, todos os ex-marinheiros do navio.

Por outro lado, José Cabral afirmou que há muito tempo o navio Mar Liso já devia carregar no costado uma placa: com a designação “Património do Estado de Cabo Verde”, à semelhança do navio Ernestina, oferecido pelo estado de Cabo Verde aos Estados Unidos da América, que é património do Estado de Massachusetts.    

Neste sentido, destacou, está a trabalhar numa proposta, “já bastante avançada”, com dados recolhidos durante a realização do filme do Mar Liso, para ser submetida ao Ministério da Cultura, com consentimento dos donos do navio, para colocar o Mar Liso na sua “verdadeira dimensão” que é de Património Nacional. 

“Não me lembro das duas câmaras municipais de São Nicolau o terem homenageado, muito menos o Governo de Cabo Verde. Excepto a Fábrica Sucla, que já fez uma grande homenagem ao navio e seu capitão”, lamentou. José Cabral disse ainda acreditar que Mar Liso deve ter uma “vida longa”, mas reconhece que o avanço das novas embarcações modernas poderá afastá-lo da cabotagem comercial. 

Nesse cenário, defende a transformação do barco em património museológico e educativo, à semelhança do que foi feito com o veleiro Ernestina-Morrissey em Massachusetts (EUA).

“O Mar Liso poderia tornar-se um barco-escola. Vejo no futuro o navio Mar Liso a carregar turista  na costa de São Vicente, Santo Antão e São Nicolau, num turismo de alto valor, com o porão pintado, todo bonitinho, transformado num salão, com cadeiras para fazer aulas  com alunos”, sugeriu.

José Cabral revelou ainda que já estão em curso os preparativos para celebrar os 100 anos do Mar Liso em 2027, afirmando que estão a tentar chegar à Dinamarca onde foi construído para se associarem às comemorações com o Estado de Cabo Verde e as câmaras municipais de São Nicolau.

“Queremos fazer do centenário do Mar Liso uma grande festa de Cabo Verde, uma homenagem não só à madeira do barco, mas às vidas e histórias que ele carregou”, concluiu.

Por outro lado, José Almeida, natural da cidade do Tarrafal de São Nicolau, compartilhou com entusiasmo sua visão sobre o navio Mar Liso, e, em entrevista à Inforpress, enfatizou a importância histórica e social do navio, que, ao longo dos anos, “tem sido fundamental tanto para o comércio como para o transporte de pessoas”, especialmente imigrantes e estudantes.

José Almeida destacou “a contribuição significativa” do navio para a vida da ilha de São Nicolau, afirmando que o mesmo é um “pronto-socorro” da ilha, sendo essencial no transporte de pacientes em casos de emergência, além de suas funções comerciais.

A contribuição do Mar Liso também se estende ao apoio a estudantes que viajam entre as ilhas para suas férias curtas, destacando que para muitos o navio é a única maneira de conseguir visitar suas famílias ou transportar pequenos pacotes e encomendas. 

“Para muitos estudantes, o Mar Liso é praticamente uma linha de vida, uma chance de se conectar com suas famílias após um período longe, seja no fim de semana ou nas férias mais curtas”, relatou.

O navio Mar Liso tem se consolidado, ao longo de décadas, como “um verdadeiro pilar” para o comércio entre as ilhas de São Vicente e São Nicolau, sintetizou a mesma fonte.

Para os comerciantes locais, o navio é de "extrema importância", não apenas como meio de transporte, mas também como um símbolo de confiança e solidariedade no sector comercial.

Alcides da Graça, um dos entrevistados, destacou que o Mar Liso teve um "papel fundamental" no início de sua trajectória profissional, quando, ainda nos anos 80, começou a actuar no sector comercial e trazer produtos de São Vicente.

Para ele, Mar Liso não é apenas um navio, mas “uma espécie de família” e representa uma segurança como “parceiro essencial para a sobrevivência e prosperidade” dos negócios locais

“Ele sempre nos ajuda a resolver os problemas, é aquele que nos desenrasca no último minuto, quando outros barcos falham, Mar Liso está sempre lá para nos apoiar,” explicou.

João Lopes, outro comerciante local, reforçou a ideia de que o Mar Liso é o principal responsável pelo abastecimento de São Nicolau, com viagens frequentes, dependendo da disponibilidade de carga.  

“Mar Liso é quem traz a carga para o comércio, e sem ele, muitas lojas não teriam produtos. Ele tem sido vital para nossa comunidade por mais de 30 anos, fazendo a ligação entre São Vicente e São Nicolau, um verdadeiro facilitador do comércio local,” comentou.

A movimentação do Mar Liso, também de forma direta, cria diversos postos de trabalho para chefes de família, estivadores e também condutores que no seu dia a dia trabalham para transportar as mercadorias de comerciantes de diferentes partes da ilha.

Diferente de outros barcos, uma outra particularidade do Mar Liso é a forma de carregamento e descarga de mercadorias, sendo que praticam a estiva manual, como conta Multa, um dos estivadores que há muitos anos trabalha no navio.

Segundo contou, às vezes são mais de 30 marcas, como é identificado a carga de cada comerciante, sendo que para descarga, ficam quatro homens dentro do porão do navio, mais seis homens no convés e seis no cais, para além de um capataz, num trabalho feito na sua maioria manualmente e que “exige muito do físico”.

Para os são-nicolauenses, Mar Liso é muito mais do que um barco, é “um símbolo de identidade, coragem e continuidade” de um povo que aprendeu a desafiar o mar e a fazer dele o seu caminho. 

WM/AA

Inforpress/Fim

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