Reportagem/50 anos da Independência: Eugénio Veiga – a liderança que transformou São Filipe e a ilha do Fogo (c/áudio)

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Reportagem/50 anos da Independência: Eugénio Veiga – a liderança que transformou São Filipe e a ilha do Fogo (c/áudio)
18/09/25 - 01:15 am

São Filipe, 18 Set (Inforpress) – Em 1992, na sequência das primeiras eleições autárquicas realizadas em 15 de Dezembro de 1991, Eugénio Veiga assumiu a Câmara Municipal do Fogo, tornando-se o primeiro autarca eleito para gerir a ilha como um todo.

A sua gestão, que se estendeu até 2012, marcou um período de profundas transformações sociais, económicas, urbanas e políticas, mesmo diante de um cenário adverso repleto de dificuldades estruturais, políticas e naturais, como a erupção vulcânica de 1995 e as sucessivas secas.

Antes da divisão administrativa que criou os municípios dos Mosteiros e de Santa Catarina do Fogo, toda a ilha constituía um único concelho e a decisão de dividir o território e criar os novos municípios, Mosteiros em 1992 e Santa Catarina do Fogo em 2005, teve, segundo Eugénio Veiga, motivações essencialmente políticas e não económicas.

“O MpD, após perder as eleições autárquicas, teria pressionado pela criação do Município dos Mosteiros para garantir espaço político. Já Santa Catarina foi criada a partir de uma proposta inicial do próprio PAICV, em resposta a reivindicações regionais, embora eu defendesse a criação do concelho de São Lourenço, pela sua relevância populacional e potencial de desenvolvimento”, explicou o ex-autarca.

Eugénio Veiga acrescentou que o Partido Africano da Independência de Cabo Verde (PAICV) criou o município de Santa Catarina como forma de "enfrentar Eugénio e São Filipe", defendendo que a criação do concelho de São Lourenço teria sido mais valiosa no processo de desenvolvimento do Fogo.

A mesma fonte defende hoje um modelo de desenvolvimento participativo, onde cada freguesia teria a autonomia de um município, coordenada por uma autoridade regional eleita pelo povo e sublinhou que “seria mais barato, mais eficaz e mais próximo da população”.

Ao assumir a liderança da gestão da ilha do Fogo em 1992, Eugénio Veiga afirmou ter encontrado um cenário de estagnação.

“São Filipe era uma cidade adormecida, um gueto de pequenos bairros desconectados, sem água potável, sem electricidade e sem infra-estrutura básica”, recordou.

A falta de serviços essenciais era visível: havia filas por água desde o amanhecer até à meia-noite; a electricidade era fornecida apenas até às 23:00 e as zonas rurais viviam num completo abandono.

Com “criatividade e gestão rigorosa”, Eugénio Veiga diz ter implementado redes de água e electricidade que, segundo ele, cobriram todo o município, um feito que considerou “inédito em Cabo Verde até hoje”.

Também, sublinhou, promoveu o desencravamento de localidades, o que, segundo ele, “não teve continuidade” após a sua saída e dinamizou o sector desportivo com a construção de infra-estruturas modernas de raiz.

“Começámos praticamente do zero. Com poucos recursos, fizemos ligações domiciliares de água, construímos redes adutoras de abastecimento de água, levámos energia a todo o concelho, inclusive ao interior, e abrimos acessibilidades. Tudo isso com recursos municipais”, destacou.

Eugénio Veiga apontou ainda que a sua gestão liderou uma “revolução urbana em São Filipe”, através de planeamento estratégico e combate à degradação habitacional, transformando a cidade, e “São Filipe tornou-se a cidade mais homogénea de Cabo Verde, sem guetos, com bairros integrados e casas dignas”.

Entre os projectos urbanísticos, destacou a definição de uma área urbanizada que se aproximava do porto de Vale dos Cavaleiros, Monte Barro e Cutelo do Açúcar/Montinho, bem como a expansão da avenida marginal em Achada São Filipe, pensados com visão de futuro, prevendo sistemas de esgotos modernos e espaços de lazer.

No entanto, lamentou que muitos desses planos tenham sido adulterados por administrações seguintes, comprometendo o desenvolvimento sustentável da zona.

Na cultura, mesmo enfrentando críticas, inclusive internas, afirmou ter elevado o sector a um novo patamar.

As festas municipais tornaram-se referência nacional, artistas locais foram apoiados em intercâmbios internacionais e praças e centros juvenis passaram a ser palcos de eventos culturais regulares, afirmou.

“A cultura deixou de ser apenas municipal e os eventos de São Filipe passaram a integrar a agenda nacional. Quem diz que eu não valorizava a cultura desconhece os factos”, rebateu Veiga, acrescentando que, durante os seus mandatos, “a cultura de São Filipe ultrapassou a dimensão territorial municipal”.

A relação com os governos, tanto do MpD (1992–2000) quanto do PAICV (2000–2012), foi marcada por tensões e segundo Eugénio Veiga, “houve falta de apoio, boicotes e tentativas de descredibilizá-lo junto de parceiros internacionais, como a cooperação alemã”.

Uma acusação recorrente era de que teria sabotado projectos financiados pela Alemanha, o que o ex-autarca nega veementemente.

“Isso é mentira absurda. Houve interferência política grosseira para denegrir a imagem e o ambiente de trabalho e nos prejudicar. Mantínhamos boas relações com a cooperação alemã. Fui a única autoridade a ir à Alemanha após a erupção e consegui mobilizar apoio directo”, lembrou.

Durante a erupção vulcânica de 1995, a Câmara Municipal de São Filipe foi a principal entidade a gerir a crise nos primeiros dias.

“Fizemos uma gestão silenciosa, eficaz e humanizada. O Governo quis transferir a gestão para os Mosteiros, mas resistimos. Não lutamos só contra a natureza, mas também contra a natureza humana”, sublinhou o ex-autarca que destacou o “papel fundamental” da cooperação alemã na criação de novos assentamentos e o apoio solidário do então Presidente da República, que visitou pessoalmente a ilha.

Apesar dos avanços, Eugénio Veiga admite que ficou por fazer aquilo que os recursos não permitiram.

“No início, recebíamos menos de dois mil contos por mês para toda a ilha. Quando saímos, São Filipe recebia 13 mil contos, e hoje já são 18 mil, mas com menos responsabilidades, menos território e menos população. Fizemos o que era possível com o que tínhamos”.

Ressaltou que não teve acesso a fundos de turismo ou ambientais e que a maioria das realizações se deveu à “boa gestão” dos escassos recursos disponíveis.

O legado de Eugénio Veiga é, para alguns, controverso, mas para muitos, inegável, pois deixou um São Filipe transformado, com infra-estruturas básicas garantidas, urbanização moderna, maior coesão social e valorização da cultura.

Uma liderança que enfrentou oposição de todos os lados, inclusive de antigos aliados e do seu próprio partido, mas que deixou uma marca duradoura na história recente da ilha do Fogo, conforme admitiu.

JR/HF

Inforpress/Fim

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