São Salvador do Mundo: Tradição da cestaria ameaçada pelas novas tecnologias, falta de interesse e apoio (c/áudio)

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São Salvador do Mundo: Tradição da cestaria ameaçada pelas novas tecnologias, falta de interesse e apoio (c/áudio)
08/10/24 - 03:36 am

***Por: Marli Coutinho Mendes, da Agência Inforpress***

Achada Igreja, 07 Out (Inforpress) – A cestaria, uma das artes mais tradicionais de Cabo Verde, está ameaçada pela falta de interesse dos jovens, pela introdução de novas tecnologias e pela ausência de incentivos às classes artesanais.

Quem expôs estes “medos” e a situação vivida no dia-a-dia foram dois artesãos veteranos de São Salvador do Mundo, município localizado no interior da ilha de Santiago, que dedicaram as suas vidas a essa prática e agora vêem o seu futuro incerto.

Júlio Lopes, conhecido como Nhu Domu, de 47 anos, começou a trabalhar com cestaria aos 12 anos, por falta de condições económicas para continuar os estudos.

Desde então, tem mantido viva uma tradição que vem de, pelo menos, quatro gerações na sua família, mas que teme que esse legado se perca, já que as novas gerações “não demonstram interesse em aprender o ofício”.

Antes dedicava-se somente à produção da cestaria, mas com o tempo teve de procurar outro ganha-pão, deixando claro que mesmo ganhando pouco não vai deixar a cestaria de lado, pois, os primeiros sapatos e roupas que comprou foram adquiridos com dinheiro ganho na cestaria.

“O 'balai' era essencial no passado, usado para preparar milho para a catchupa ou a farinha para o cuscuz. Hoje, tudo se compra pronto e ninguém quer mais usar o pilão”, lamenta o artesão.

Além da pouca procura, ele destaca a falta de apoio e formação por parte das autoridades. Segundo ele, os jovens vêem a cestaria como uma actividade pouco atractiva e de baixo rendimento.

“Eles acham bonito ver o produto pronto, mas não percebem o trabalho que dá desde a colecta da matéria-prima até o acabamento”, explicou.

Outro artesão, Casimiro Vaz, de 54 anos, também vive a incerteza sobre o futuro da cestaria.

Ele começou a trabalhar com artesanato aos oito anos, aprendendo o ofício com o irmão mais velho e, inicialmente, fazia cestos e balaios para ajudar no sustento da família, mas com o passar do tempo, viu a procura diminuir drasticamente.

Hoje opta por criar produtos decorativos sob encomenda, uma tentativa de adaptar-se às novas demandas.

Casimiro Vaz lamenta que os únicos interessados em aprender a cestaria sejam estrangeiros que vêem a actividade como um “hobby”.

“Recebo visitantes de fora que querem aprender um pouco, mas a nível local quase ninguém procura. Isso me deixa desanimado e com medo de que, quando não pudermos mais trabalhar, a tradição desapareça”, desabafou.

Ambos os artesãos têm-se adaptado à nova realidade, produzindo sob encomenda e participando de feiras de artesanato para vender os produtos que ainda têm saída.

Nhu Domu, por exemplo, já participou de três edições da Feira de Artesanato e Design (URDI) e planeja expor novamente este ano, mas diz enfrentar dificuldades no transporte das mercadorias.

“O sistema de transporte é problemático. Os produtos muitas vezes chegam danificados ou não chegam a tempo. Colocamos 'frágil', mas quem organiza as cargas não respeita isso”, denunciou.

Casimiro Vaz, que também participa de eventos locais e possui um cartão de artesão, reforça a necessidade urgente de mais apoio e formação.

“Precisamos de programas que envolvam os jovens e valorizem a cestaria como parte da nossa identidade cultural, caso contrário, vamos perder um pedaço importante da nossa história”, alertou.

Os artesãos defenderam a criação de espaços dedicados à venda e exposição de seus produtos, além de centros de formação para transmitir o conhecimento às novas gerações.

“Seria um sonho ter um local onde pudéssemos produzir, vender e ensinar. Vamos continuar a trabalhar com o que temos, na esperança de que alguém perceba a importância de preservar o que os nossos antepassados nos deixaram”, concluiu Nhu Domu.

A urgência de apoios e a preservação do ofício são ainda mais prementes num contexto em que as tradições artesanais estão a perder-se rapidamente, substituídas por soluções modernas que muitas vezes ignoram a riqueza cultural e a herança de gerações.

Assim, a cestaria cabo-verdiana, outrora símbolo de sustento e expressão artística, luta para não ser esquecida, contando apenas com a dedicação de alguns poucos artesãos resilientes que continuam a tecer a história com as suas próprias mãos.

A cestaria é uma tradição secular em Cabo Verde, trazida pelos primeiros habitantes e adaptada ao longo do tempo para responder às necessidades do dia-a-dia.

Feitos de materiais como folhas de coqueiro e caniço, os cestos e balaios eram essenciais na produção agrícola e no armazenamento de alimentos, sendo símbolos de resiliência e identidade cultural cabo-verdiana.

MC/HF

Inforpress/Fim 

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