Nha Balila diz que era janota de “coxa redonda” e se deslumbrava com batuque no terreiro

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Nha Balila diz que era janota de “coxa redonda” e se deslumbrava com batuque no terreiro
30/07/25 - 12:27 pm

*** Por Sandra Custódio, da Agência Inforpress ***

Cidade da Praia, 30 Jul (Inforpress) - Nha Balila, cantadeira de batuque e finaçon, conhecida por “meio mundo”, com memória fértil, recorda um pouco da sua vida e diz que na mocidade era “janota de coxa redonda” e se deslumbrava com o batuque no terreiro.

"Abo mó qui bu txoma?" (como te chamas? em português), foi assim, toda espevitada, que Nha Balila recebeu a equipa da Inforpress para um momento de conversa, em que esta mulher cega de nascença, 95 anos, que não enxerga com os olhos, mas vê com o coração, falou um pouco de si, das suas mágoas, alegrias e preocupações.

Isidora Semedo Correia, é assim que se chama, recebeu a alcunha de Balila pelos seus pais, que significa “bali pena” (vale a pena, em português), conforme explicou, nasceu a 12 de Dezembro de 1929, na localidade de Serra Malagueta, no concelho de Santa Catarina, interior da ilha de Santiago.

Proveniente de uma família rural, é filha de Paulina Tavares e de Raimundo Semedo, pais de 12 filhos, dos quais quatro cegos, entre eles Nha Balila, que na sua mocidade, conta, era bonita “di coxa rodonda”.

“Contrariamente ao que as pessoas pensam, somos cegos de nascença. Saímos assim dentro do ventre da nossa mãe. Não nos empurraram para cair nem nos furaram os olhos”, exteriorizou.

Deixou claro que a sua condição de invisual nunca lhe impediu de fazer absolutamente nada, apanhava água nas fontes, transportando a lata em cima da cabeça, lavava roupa na selha, cozinhava, pilava o milho, fazia cuscuz, apanhava lenha e ordenhava cabras e vacas, entre muitas outras tarefas da casa e do campo.

“As pessoas que não podem ver também conseguem executar tarefas, fazer as suas coisas. Não somos inúteis, temos coração, ideias e entendimento. Era uma jovem janota, coxa redonda, peito e costas bonitos, batucadeira, tocadeira de ferro e gaita (…) um pinta manta na nha tempo”, exteriorizou, com alegria no semblante, ostentando os seus característicos óculos escuros que escondem seus olhos.

Cantadeira de batuque e finaçon, tradições ligadas à dança ou a um ambiente de festa, Nha Balila começou a se interessar pela prática desde tenra idade, fazendo companhia aos pais que animavam as festas com batuque em Serra Malagueta.

No tempo de criança foi para escola, mas não continuou devido ao seu problema de visão, mas recorda, entretanto, que brincou como qualquer outro menino.

Nha Balila vem para a cidade da Praia nos anos 60, passa a residir em Tira Chapéu, arrabalde da cidade, onde é por todos conhecida, sabem onde mora, aliás é fácil chegar lá, ninguém se engana da casa que ostenta seu retrato pintado numa das partes da parede exterior.

Mas antes de vir para a cidade da Praia, foi para Angola, mais propriamente a cidade de Cabinda, com um senhor da ilha do Fogo, com quem era casada e do qual teve um filho. 

Regressa quatro anos depois a Cabo Verde e fixa-se na Assomada, na localidade de Pedra Barro, porque o marido não quis morar mais em Serra Malagueta.

Lúcida, Nha Balila conhece "meio mundo" e já viajou também para outros países como, Moçambique, São Tomé e Príncipe, onde fez quase todo o tipo de trabalho como contratada nas roças, Holanda, Portugal e Estados Unidos da América, recordando “bons tempos e bons momentos”.

“Vim da América há pouco tempo. Cantei batuque em sete zonas. Fui bem-recebida. Fiquei encantada. Não vejo com os olhos, mas contemplo e sinto com o coração a amabilidade das pessoas. Cabo-verdianos ta lapi na mi ta txora (expressão emocional, manifestação de carinho, abraço apertado)”.

Por outro lado, contando as suas angústias e dissabores, nesta fase de vida, disse que as pessoas pensam que Nha Balila é bala, mas Nha Balila é “bali pena”: toca ferro na gaita, canta e dança batuque, dá com torno e muito mais, mas desejava ver.

Das mágoas, conta o “desrespeito” de alguns vizinhos para com ela, sendo muitas vezes agredida, como apontou, com bofetada, se estiver à porta de casa, também água atirada ao rosto, despejo de água suja e urina à porta da sua casa, entre outras queixas.

“Nunca fiz mal a ninguém. Falo com a minha boca e a minha língua (…) então as pessoas dizem que sou atrevida, dirigindo-me também outros insultos. Sou cega, mas sou gente. Os deficientes são pessoas, não bichos, cabra, porco, burro ou vaca. Não devemos ser desprezados, dói”, exteriorizou em tom de desagrado.

“Bali pena” como se designa, lamentou também o facto de lhe ter sido diminuído, em 2003, a pensão de dez mil para seis mil escudos, que diz não chegar para cobrir as despesas com luz, água, mormente alimentação, pelo que conta com a benevolência de algumas pessoas amigas e da filha, de 72 anos, que é peixeira.

A propósito fez questão de mencionar o nome da governante que, na altura, lhe retirou parte do seu pão, a qual, conforme disse, tem muita mágoa e não lhe perdoa.

Pulando essa parte, perguntado sobre gostos e sabores, no meio de gargalhadas, respondeu que gosta de cachupa, papa de milho com leite, massa de milho com galinha e “muitas outras comidas saborosas”.

A meio da conversa, esta figura popular da cidade da Praia fez uma demonstração de batuque, cuja letra e música foi criada por ela, intitulada “Dentu di alguém kê alguém”, criticando situações menos boas da sociedade, almejando, ao mesmo tempo, “rumo e orientação” aos jovens, que mais tarde, conforme prognosticou, vão conduzir os destinos desta terra.

“O meu batuque anda mundo inteiro. Há muito tempo que não faço uma música de batuque, mas estão registadas na minha memória. Com toda essa maldade no mundo e em Cabo Verde, se as coloco para fora sou capaz de ser liquidada, porque homens e mulheres não estão a comportar-se bem”, comentou, advertindo que a mulher tem dois rostos e tem que se valorizar.

Dois rostos, Nha Balila, como assim? ao que retorquiu: “Para dizer? Olha que eu digo… Um dos rostos fica no alto do pescoço e o outro entre as pernas, mas as mulheres sem vergonha, não estão a dar valor a este órgão sexual feminino. Cabra dja tomba bodi, brio dja mata baca e dinhero fáxi sta na moda”, reprovou.

“Ah caramba.  Ess kê Balila propi. Não vê com os olhos, mas vê com o coração. Conberso sabi ladron di tempo, devagar se vai ao longe, pouco melhor que nada, indjuto mori ferferi fica. Ami Balila um ka tem medo, um ka tem temor, ka medo mar ki tem tibaron ki fari lagoa ki tem tainha”, expressou a mulher a quem faltam cinco anos para chegar aos 100.

SC/AA

Inforpress/Fim

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