Desanuviam-se os montes em redor da Cidade da Praia, dissipam-se as cortinas de poeira de São Vicente, esvoaçaram as preocupações que pairavam sobre as cabeças dos responsáveis civis e religiosos pelo acolhimento à altura do Sumo Pontífice.

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A estada em Cabo Verde do “Papa que vem de longe” em busca de paz para os homens e de conforto para os oprimidos, nas palavras do Presidente Aristides Pereira aquando do desembarque no Aeroporto Francisco Mendes, até foi saudada por inesperadas descargas de chuva, que desdentaram o solo e afinaram as gargantas das populações que, incansáveis, cantaram ao longo de praticamente três longos dias, hinos de alegria, em que sobressaía o refrão: “Bem-vindo João Paulo II Flor da Igreja Universal/ Vem este povo abençoar/ Cabo Verde quer-te ver e saudar”.

A multidão de fiéis, à partida, cheia de júbilo convidou o mensageiro de esperança a voltar, ao que ele comovidamente agradeceu: “Levo na alma a esperança que li nos olhos vivos das vossas crianças e dos jovens e que se espelha no sereno realismo da gente bondosa desta terra, que sabe lutar e para a qual ser pobre não é vergonha”, proferiu no momento do “Adeus”, selado com um “Obrigado”.

Os dias que antecederam a chegada do desejado visitante foram vividos em clima de expectativas eufóricas e de intensos preparativos, desde a capital aos locais mais recônditos do país.

Na Praia por exemplo, enquanto uns se esmeravam na limpeza de rua ou no alindamento de montras, outros trabalhavam dia e noite na zona de Quebra Canela, para pôr de pé as infra-estruturas indispensáveis a uma memorável celebração de eucaristia em que participaram representantes de quase todas as comunidades nacionais (e de muitas no exterior) dado que as restantes foram canalizadas para o Mindelo).

“Benvindo João Paulo II/ Estas Ilhas deste há muito te esperam” – era cartão de boas-vindas na avenida Amílcar Cabral e também no edifício principal do aeroporto.

O beijo da Humildade

Chegou, finalmente, quinta-feira, e a Cidade da Praia tornou-se um grandioso receptáculo de gentes, com viaturas num corrupio constante, desde os confins do interior de Santiago. Era de festa o ar respirado no Arquipélago.

“Todo o povo da ilha do Sal – por onde acabais, felizmente, de pôr os pés em Cabo Verde pela primeira vez para a vossa 45ª visita pastoral – todo esse povo Vos recebe com indizível emoção e Vos saúda – também ele – com extremoso filial afecto”, eis palavras de anfitrião proferidas por D. Paulino Évora, Bispo de Santiago Cabo Verde, a meio da tarde do primeiro dia da visita papal, no Aeroporto Internacional Amílcar Cabral, na presença dos salenses que, dos Espargos e Santa Maria, desde Pedra de Lume e Palmeira “correram em peso, pressurosa e ansiosamente” ao local, para se deleitarem com os conselhos, apelos e orientações do “Pastor Universal da Igreja de Jesus Cristo” e “defensor intrépido da verdade, da Justiça da Vida, da liberdade e de todos os demais valores morais e espirituais do Homem e da Humanidade”, como frisou o orador.

Porém, seria pelas 17 horas dessa histórica jornada que os festejos atingiram o auge, na Cidade da Praia.

Entre a Praça 12 de Setembro e o aeroporto, cordões humanos agitavam bandeirinhas apuravam vista e a voz, para poderem abertamente expressar o seu contentamento ao Papa Peregrino.

Frente à saída central do aeródromo nem a tabanca de Achada Grande quis faltar com o seu som pujante de bombos e búzios, que mesmo assim seriam abafados pelos cânticos da multidão presente, quando o aparelho dos TACV se preparava para aterrar, à hora prevista.

Descem cardiais do avião e outros altos dignitários da comitiva, e breves instantes depois o Papa João Paulo II, que mal pisa o solo se debruça para ósculo de humilde caminheiro e fraternal companheiros dos que não vacilam perante a adversidade e transformam as fontes de lágrimas em chão propício ao pão saboroso da dignidade construída.

Quatro pioneiros estendem-lhe um ramalhete de flores e uma pomba para voar em liberdade e ao mesmo tempo que o Presidente da República lhe renova oscumprimentos amistosos, reforçados com os dos restantes membros do Executivo e do corpo Diplomático, ao longo da passadeira rubra que conduzia à porta do aeroporto, a partir do fundo da escadaria da aeronave. Entretanto foi-lhe apresentada pelo 1º Tenente Pereira a unidade das FARP indigitada para a guarda de honra, com sua fanfarra, que tocaria o Hino Nacional, a anteceder o “banho” de multidão.

Milhares de bandeirinhas empunhadas por mulheres, homens e crianças falam do seu apreço pelo Papa, mal lhe vislumbram o perfil a dirigir-se para o átrio do aeroporto e adivinha a mensagem de que é portador.

Desenvolvimento assente na solidariedade

Ensejo teve o Chefe de Estado para transmitir ao Santíssimo Padre, em nome da Nação Cabo-verdiana que tantos filhos viu partir para longes terras, as saudações calorosas do que esperam quase 10 anos por esta primeira visitas às ilhas Atlânticas, inserida no roteiro de “mais uma série de países do martirizado Continente Africano”, testemunhando deste modo uma extrema solicitude “para com os mais deserdados da fortuna, aqueles que por todo o planeta mais particularmente no terceiro Mundo e nesta nossa África, enfrentam ainda o pesado fardo do subdesenvolvimento e suas desastrosas consequências”. Aliás, estamos perante nova iniciativa de quem, empenhado na edificação dum “Mundo mais justo, pacífico e seguro, propício à realização integral do Homem e a protecção do meio ambiente” instituiu há seis anos a “Fundação João Paulo II para a Sahel cuja finalidade demonstra a sorte do homem africano particularmente o da zona saheliana e natureza envolvente estão no cerne das preocupações do Pastor Supremo da Igreja Católica, segundo o primeiro magistrado da Nação.

Depois de lembrar que a visita da sua Santidade ocorre numa altura em que “ o espírito da sua confrontação parece ceder lugar ao diálogo construtivo”, nas relações internacionais, o Presidente da República, Aristides Pereira traçou o historial do processo emancipador que conduziu à independência guiados os seus mentores “pela preocupação maior de estabelecer, nestas ilhas uma sociedade de paz e dignidade moral e material, sem descriminações nem preconceitos, e inspirado por um profundo respeito pelos direitos e liberdades da pessoa humana”. Nessa luta receberam sempre a melhor compreensão da Santa Fé, ilustrada pelos gestos de encorajamento expresso pelo antecessor do Papa João Paulo II, Sua Santidade Paulo IV, que em 1970 recebeu no Vaticano “Amílcar Cabral e outros companheiros da causa da libertação de África”.

Até aos dias de hoje, sublinhou, esforços e sacrifícios têm sido generosamente feitos no Arquipélago, no afã de lhe gradear “um desenvolvimento autêntico baseado na solidariedade, liberdade e igualdade de oportunidades para todos”.

No País mais Católico do Continente Africano, predisposto a um relacionamento cordial com a Santa Fé, o Presidente da República fez votos para que a presença e mensagem do Papa em Cabo Verde se tornasse numa “fonte de inspiração para todos os homens de boa vontade desta terra”.

(Voz di Povo: Janeiro de 1990)